A MATÉRIA DOS SONHOS
Por Fernando Marques
Composto a partir de textos de William Shakespeare e Fernando Pessoa, combinados a efeitos visuais e a música de gêneros diversos, O Naufrágio “fala, em última instância, do sonho e da criação”, adianta a diretora Silvia Davini em nota no programa do espetáculo, realizado no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília, em 2010. Buscaremos acompanhar alguns dos fios de sentido que percorrem a montagem, rica em símbolos e avessa a leituras demasiado literais.
A primeira cena da comédia A Tempestade, de 1611, a última das peças escritas por Shakespeare, reúne-se aqui a O Marinheiro (1913), “drama estático”, segundo o chamou Pessoa. O mar e as conotações que o navegam – viagem, risco, descoberta – amparam, desde o título, a composição do espetáculo.
Trata-se de polos opostos, porém: enquanto a cena inaugural da comédia shakespeariana apresenta a luta dos marujos contra a tempestade que, brutal, fará naufragar o navio com o rei de Nápoles e outros nobres, o drama de Pessoa, reproduzido na íntegra, vale-se da conversa de três irmãs que velam o corpo de uma quarta mulher. O evento importante, neste segundo caso, acha-se no passado e é objeto do comentário desalentado e lírico das personagens. Elaborando esses materiais, O Naufrágio tece a sua rede de significados.
Três figuras femininas sustentam a trama. Primeiro, Marina, que empresta sua voz às falas agônicas de marujos e passageiros do navio – o barco termina por bater numa ilha. Depois, Miranda, filha de Próspero, duque deposto de Milão que vive nessa ilha e que tem a seu serviço Ariel, espírito do ar, capaz de todos os sortilégios. Por fim, surge Milagros, que se confunde com uma das irmãs tomadas ao drama de Fernando Pessoa. Essas figuras duplicam-se, espelhadas nas três personagens do poeta português ou, mesmo, em The Three Fates (Clotho, Lachesis, Atropos), As Três Parcas, título da moderna, convulsa peça musical do grupo Emerson, Lake & Palmer, que abre os trabalhos.
Próspero promove o temporal, mas salva os náufragos: entre eles, estão os usurpadores do trono de Milão. Ele o faz para vingar-se dos criminosos e para, a seguir, perdoá-los, evidenciando-se aqui um dos temas caros a Shakespeare, o do governo legítimo e justo.
O espetáculo não acompanha o texto inglês além do ponto em que Próspero revela à filha ter evitado, propositadamente, que os viajantes sofressem qualquer dano: “Nenhum. Tudo o que fiz, foi por ti, simplesmente, minha filha, por tua causa, filha idolatrada, que não sabes quem és, nem tens notícia de onde eu teria vindo”, diz o homem à menina, em voz off.
Pouco adiante, o duque deposto acrescenta: “O espetáculo terrível do naufrágio que em ti fez despertar a própria força da compaixão, por mim foi de tal modo dirigido, com tanta segurança, que, de toda essa gente, cujos gritos ouviste e que à tua vista naufragou, nenhuma alma, nenhuma, nem um fio de cabelo sofreu nenhum prejuízo”. Na peça original, ele então narra a sua longa história.
Estamos, portanto, em pleno território dos sonhos. A metáfora em causa, elaborada desde os primeiros momentos do espetáculo e que se vai desdobrar até o final, parece apontar para a capacidade, que todos teríamos, de reinventar presente e passado, e com isso redesenhar o futuro. Capacidade essa que se debate, é claro, contra forças opostas: a eventual traição dos que nos são próximos, a exemplo da que sofreu Próspero; nossos próprios medos, nosso pendor à corrupção; os acidentes materiais de toda sorte.
O espetáculo encenado por Silvia Davini tem as principais personagens interpretadas, com vigor e sensibilidade, por Sulian Vieira (o elenco também traz Sara Mariano, Cesar Lignelli e a própria diretora). A montagem movimenta variado arsenal de técnicas modernas e contemporâneas. Uma caixa retangular de madeira, chamada “caixa mágica” nas rubricas do roteiro, pode ser leito para Miranda que dorme e sonha, assim como pode ser túmulo (ecoando a personagem morta do drama de Pessoa), e de suas gavetas surgem objetos que vêm a ser utilizados no palco. Entre outras aparições, vale citar as miniaturas que aludem a mar, navio, praia, naufrágio, coisas que repentinamente mudam de dimensão diante de nossos olhos. Ventos e ondas revoltas tornam-se agora algo quase pueril, suave.
Mais importante, pela presença extensa no espetáculo, são as telas onde se projetam imagens da mesma atriz, representando, no entanto, o trio de mulheres de O Marinheiro. O ambiente condensa, de maneira simultaneamente estranha e familiar, o teatro em seus traços distintivos, tradicionais, e as práticas cênicas contemporâneas, com telas e atrizes coexistindo como que de modo natural. Iluminação e trilha sonora – na qual aparecem, por exemplo, trecho sinfônico de Mahler e canção jazzística gravada por Silvia – mostram-se poeticamente eficazes. Os espaços da sala são mobilizados em réplicas dadas a partir de um segundo piso, lançadas à Segunda Veladora, que permanece no centro da cena, à nossa frente, a narrar o que recorda de seu marinheiro imaginário.
A narração desse sonho – no qual a moça visualiza o marinheiro que, por sua vez, sonha também – traduz o núcleo dos conceitos-sensações a se adensarem no espetáculo. A Segunda Veladora, ou Milagros, conta: “Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira... mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... (...) Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido...”. Somos o que sonhamos ser, e nisso reside a nossa liberdade. Aí está um dos motes desse belo e fértil Naufrágio.
Dezembro, 2010.